Páginas

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Você sabe o que é vocação laical?


QUEM SÃO OS LEIGOS E SUA PARTICIPAÇÃO NA IGREJA

A palavra leigo é de origem grega e significa “povo”. Os leigos são os cristãos que não são membros da sagrada ordem ou do estado religioso reconhecido canonicamente pela Igreja, isto é, são os fiéis que, pelo batismo, exercem a missão de todo povo cristão. São chamados a viver o seguimento de Cristo na realidade cotidiana do homem, isto é, chamados a brilhar a novidade e a força do evangelho na sua vida cotidiana, familiar, social, e a manifestar, com paciência e coragem, nas contradições da época presente, a sua esperança na glória.

O leigo nasce para o mundo, por isso, o seu caráter mundano é assumido pelo batismo de tal forma que no mundo é que ele tem que ser cristão. Junto com os ministros ordenados e com os religiosos ele é co-responsável pela missão da Igreja. A sua espiritualidade se constrói à luz de uma Igreja a caminho com os homens, vivendo no mundo e para o mundo, desempenhando a missão que é ao mesmo tempo de evangelização e de animação de todas as realidades temporais.

São pessoas que vivem a vida normal: estudam, trabalham, estabelecem relações amigáveis, sociáveis, profissionais, culturais, etc. O Concílio Vaticano II considera essa condição como uma realidade destinada a encontrar Jesus Cristo na plenitude do seu significado. O mundo torna-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois é ai que manifestam Cristo aos outros, por meio do testemunho da própria vida, pela irradiação de sua fé, esperança e caridade.

VOCAÇÃO A SANTIDADE

Tudo quanto fizerdes, por palavras e obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por Ele graças a Deus pai (Col 3, 17). Estas palavras aplicam à vida dos leigos. Nem os trabalhos familiares nem quaisquer outras ocupações profanas devem ser realizadas alheias à vida espiritual. Eles devem olhar para as atividades cotidianas como uma ocasião de união com Deus e do cumprimento de Sua vontade, e também como serviço aos homens. A vocação à santidade deve ser compreendida e vivida pelos fiéis leigos como sendo uma obrigação exigente e que não pode ser renunciada.

Homens e mulheres, solteiros e casados exercendo o seu papel na sociedade, realizando o seu trabalho e testemunhando a verdadeira caridade. Encontra-se, na Igreja atual, santos que exerceram uma atividade simples, mas que se assemelhavam a Cristo nas suas virtudes e humildade, e assumiram a sublime tarefa de trabalhar para que a salvação atinja um número ainda maior de filhos de Deus

VIDA APOSTÓLICA

Efetivamente eles exercem a sua atividade apostólica para a evangelização e santificação dos homens. Como são chamados a estarem no mundo, eles exercem o seu apostolado à maneira de fermento, com entusiasmo e espírito cristão. Cheios do Espírito Santo se configuram cada vez mais com Cristo e são fortalecidos no anúncio do evangelho. Para cumprir suas funções de cristão no mundo, recebem os dons particulares, chamados de carismas. Animados pelo Espírito Santo e dotados de carismas, eles não necessitam esperar nenhum outro mandamento para desempenhar sua missão cristã na Igreja e no mundo, mas somente procurar que seus dons espirituais seja inseridos no contexto dos carismas e dos ministérios da comunidade e na caridade eclesial, embora o discernimento dos carismas cabe ao bispo.

A fecundidade do apostolado dos leigos depende de sua união com Cristo, assim diz o Senhor: “Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5). Esta vida de íntima união com Cristo é alimentada pela participação na sagrada liturgia, a fim de que cresçam intensamente nela exercendo o seu trabalho segundo a vontade de Deus.

O ANÚNCIO DO EVANGELHO

O pai chama muitos para sua vinha, por isso, ele os capacita para esta missão, e os leigos também têm a missão e a vocação de anunciar o evangelho. Por participarem do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, eles têm parte ativa na vida e na ação da Igreja, se empenhando nas obras apostólicas. Conduzem àqueles que estão longe, cooperam intensamente na comunicação da palavra de Deus, principalmente, na catequese. Como profetas, dão testemunho de fé cristã, uma fé como resposta para os problemas e as esperanças que a vida põe a cada homem e a cada sociedade. Quando a Igreja lê o que diz Jesus: “ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura (Mc 16,15), ela sabe que há milhões de pessoas que ainda não conhecem a Cristo, por isso, a tarefa dos leigos se tornou mais necessária e preciosa. Muitos estão prontos a deixar o seu ambiente de vida, o seu trabalho, a sua região ou pátria, para assumir este trabalho. Eles se colocam a serviço por amor a Cristo e a sua Igreja. É importante ressaltar que a evangelização deve começar pelas famílias cristãs, por isso, elas devem sentir a responsabilidade de favorecer o despertar e o amadurecer de vocações especificamente missionárias, tanto sacerdotais e religiosas como laicais.

TRABALHADORES DO SENHOR

Na parábola do evangelho de Mateus capítulo 20, o proprietário da vinha sai para contratar operários nas várias horas do dia, e a cada um ele combina um denário. A cada hora do dia significa uma idade, isto é, o senhor chama cada um desde a sua infância (como aconteceu com Jeremias), até aqueles que estão em idade mais avançada. Esta variedade está ligada não somente na idade, mas também à diferença de sexo e à diversidade dos dons, como às vocações e às condições de vida.

Os jovens hoje são uma grande força evangelizadora da Igreja. A sensibilidade dos jovens favorece para que eles coloquem em prática o senso de justiça, de paz. Estão sempre abertos à fraternidade, à amizade e à solidariedade. Mobilizam-se facilmente em favor das causas ligada à qualidade de vida, à conservação da natureza.

Os idosos são chamados a continuar a sua missão apostólica e missionária, pois, apesar da idade avançada, são pessoas cheias de sabedora e de temor de Deus e muito tem para contribuir para a fé do povo.

A mulher tem uma grande contribuição na edificação da Igreja e no progresso da sociedade. A igreja tem consciência de que a mulher, com seus dons e funções que lhe são próprias, tem uma vocação específica própria. Embora não tendo sido chamada para o apostolado próprio dos doze, muitas mulheres acompanharam Jesus no seu ministério e deram assistência ao grupo dos apóstolos, estiveram presentes ao pé da cruz, cuidaram da sepultura de Cristo, receberam e transmitiram o anúncio da ressurreição e rezaram com os apóstolos no cenáculo à espera de pentecostes. Nas igrejas primitivas foi confiada às mulheres tarefas ligadas à evangelização. O apóstolo Paulo menciona algumas mulheres que contribuíram para alimentar a fé das comunidades cristãs, assumindo variadas funções no seio e no serviço das comunidades.

Como não pode receber o sacramento da ordem, ela é chamada a colocar em prática os seus dons próprios e a Igreja tem a responsabilidade de promover o papel da mulher na missão evangelizadora e na vida da comunidade cristã.

ESTADO DE VIDA LAICAL

Dentro do estado de vida laical há lugar para várias vocações, isto é, diversos caminhos espirituais e apostólicos que dizem respeito a cada fiel leigo. No caminho da vocação laical florescem vocações particulares. Os fiéis leigos, e também os próprios sacerdotes, abrem-se à possibilidade de professar os conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência) por meio dos votos ou das promessas, conservando plenamente a própria condição laical e clerical.  O Espírito Santo suscita outras formas de doação de si mesmos, a que se entregam pessoas que permanecem inteiramente na vida laical. Cada um é chamado a produzir frutos de devoção segundo o seu estado e sua condição. O Concílio Vaticano II afirma que a espiritualidade dos leigos deverá assumir características especiais, conforme o estado de matrimônio e familiar, de celibato ou viuvez, situação de enfermidade, atividade profissional e social, mas que sejam utilizados os dons por cada um recebidos do Espírito Santo. Na verdade, cada um é chamado pelo seu nome, na unicidade e irrepetibilidade da sua história pessoal, a dar sua própria contribuição para o advento do reino de Deus.

Para discernir uma vocação e a disponibilidade para vivê-la, os fiéis leigos devem ser formados. Para se descobrir a vontade de Deus são indispensáveis a escuta pronta e dócil da palavra de Deus e da Igreja, a fidelidade na oração, a direção espiritual, a leitura, feita na fé, dos dons e talentos recebidos, as diversas situações sociais e história que cada um se encontra. Não basta saber o que Deus quer, mas é preciso fazer o que Ele quer. E para agir com fidelidade à vontade de Deus é preciso ser capaz e tornar-se cada vez mais capaz.

Ir. Silvana Alves Nogueira/Consagrada Comunidade Luz da Vida

Fonte: Dicionário de Espiritualidade, Paulus; Documento do Concílio Vaticano II; Exortação Apostólica de João Paulo II Christifideles Laici.

A Vocação Laical

Carlos Signorelli

1.    Introdução

1.  A palavra vocação se origina do verbo latino vocare (chamado) e refere-se à realidade de que Deus chama (vocaciona) os seres humanos. Ele é o autor e doador do primeiro dom que é a vida. O primeiro chamado de Deus para a pessoa humana é o chamado à vida.

2.  Em Jesus Cristo recebemos a revelação de que podemos viver na presença, na contemplação de Deus: “Quem me vê, vê o Pai”.  Ao contemplarmos o Rosto do Pai revelado no Filho percebemos um chamado (vocação) do Cristo à vida em santidade: “Sede perfeitos, como o Vosso Pai que está nos céus é perfeito”. O chamado ao seguimento do exemplo de amor e compaixão de Deus que se dá em Seu Filho, nos aponta a nossa vocação à santidade, que tem a Trindade Santa como fonte e como horizonte.

3.  A vida, como dom e vocação, deve ser vivida em santidade no coração da comunidade dos batizados.  A Igreja, Corpo de Cristo, Povo de Deus, que se constitui de muitos membros, com diversidade de funções, serviços, ministérios e carismas.

 4. Na sua diversidade, a comunidade dos fiéis é chamada (vocacionada) toda ela a viver em santidade, na gratuidade da vida recebida e do amor. É chamada a ser ela mesma sinal do amor gratuito, apaixonado, transformador, terno com os pobres e com os que sofrem...Que é o amor de Deus.


2.    Vocação: Dom de Deus, resposta da Pessoa

5.  A vocação é Dom, é graça, é constitutiva da Igreja. Não há Igreja sem vocação. A Igreja é a assembléia dos vocacionados. Ela não é a fonte, mas a mediadora da vocação e o lugar de sua manifestação. Ela não dá vocação ou carismas, mas organiza e discerne os ministérios. A vocação e os ministérios são elementos fundamentais e constitutivos da Igreja. Sem vocações e ministérios não há uma comunidade eclesial. A vocação é infundida em todos aqueles e aquelas que, pessoalmente ou levados por seus pais ou padrinhos, assumem o ser Igreja no Batismo. O Batismo é, portanto, o momento da semente vocacional. Por isso, não há batizado sem vocação, não há homem ou mulher que assumiu o ser Igreja no Batismo que não seja chamado, vocacionado.

6.  Não se pode perder a dimensão trinitária da vocação: “Deus é a fonte da vocação: o Pai chama para a missão; o Filho, servidor do Pai, exprime esse chamado, nos envia; e o Espírito Santo faz ecoar a palavra em vista do bem de todos. Em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito carne, encontra-se o fascínio para penetrar no mistério trinitário e responder à vocação.” (Doc final do 1º Congresso Vocacional do Brasil-1999)

7.  O chamado primordial é à ação evangelizadora. A Igreja existe para evangelizar; o Batismo existe para constituir a Igreja, que “é chamada por Deus a realizar uma missão no mundo. Tal missão, prosseguimento da prática de Jesus Cristo, que ‘não veio para ser servido mas para servir e dar a vida em resgate de todos’, é o serviço que ela deve prestar.” (Doc 62, 44)

8.  A partir disso, o Dom do Espírito Santo é espalhado por todos os batizados nas mais diferentes formas, chamando a cada um de forma diferente e dando-lhe as condições necessárias para a consecução da parte que lhe foi reservada. “Dessa forma, a missão evangelizadora da Igreja é realizada por todo o povo de Deus, com sua variedade de vocações e ministérios.” (Doc 62, 62)

9.  Assim Paulo se expressa em sua 1ª Carta aos Coríntios: “Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Cada um recebe o Dom de manifestar o Espírito para utilidade de todos.” (1 Cor 12,4-7)

10.  Assim os primeiros cristãos entendem o chamado e a ação do Espírito. Entendem-se “a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido (...) Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus...” (1Pd 2,9-10) Desta maneira, todos, sem distinção, sentem-se como que obrigados a exercitarem quotidianamente o anúncio e o testemunho de sua fé.

3. O encobrimento da vocação laical

11.  Fatores internos e externos, o crescimento numérico dos cristãos, a formação continuada de um conjunto imenso de comunidades que se espalhavam por todo o Império Romano, tornaram a Igreja uma estruturação institucional, abandonando lentamente o que se poderia chamar “movimento de Jesus”. Nesse processo de institucionalização, funções e serviços foram sendo criados, uns na busca de coordenações mais fortes e centralizadoras, outros na busca de uma normatização litúrgica mais identificante e equalizante. Num primeiro momento, outras funções eclesiais continuaram a ser exercidas por outros que não esses, como a catequese, por exemplo. Mas não demorou muito a que estas funções litúrgico-organizativas fossem encampando também as demais funções eclesiais. Poderíamos denominar esse processo, na falta de outra denominação mais adequada, de clericalização. A partir do momento em que tal processo se cristalizou e mundializou, as vocações destinadas aos ministérios do altar passaram, também, a abarcar todos os demais serviços. Passam a existir, portanto, batizados cuja única função era a de serem levados pelas mãos de seus pastores.

12.  Num segundo momento, levados inclusive por formulações filosóficas oriundas do platonismo, pensadores cristãos iniciam um processo de desvalorização do corpo, supervalorizando o elemento espiritual, a ascese e aqueles que a praticam. O mundo da carne se contrapõe e corrompe o mundo do espírito. Estar próximo do primeiro é tender ao pecado e à perdição. Assim, a supervalorização do mundo espiritual e da ascese supervaloriza, também, aqueles que exercem as funções que, no mesmo entender, ligam-se diretamente a Deus. As funções litúrgicas, a vida completa em oração e renúncia dos eremitas religiosos e religiosas, estes são os modelos de aproximação gloriosa de Deus. Por outro lado, a vida quotidiana da família, o cuidado dos filhos, o exercício da profissão, tudo isso passa a ser, no mínimo, um mal necessário. E os cristãos e cristãs que assim vivem beiram continuamente o pecado e se afastam, sem que o queiram, da graça.

13.  Eis, bastante sintetizado, o movimento de superdimensionamento das vocações voltadas para a ação interna da Igreja e para a oração, e o pouco incentivo a outras vocações.  Eis, também, um dos motivos pelos quais, nas reflexões vocacionais, estamos sempre pedindo pelas vocações sacerdotais e religiosas, esquecendo-nos totalmente de que, se todos os batizados são Igreja e se não há Igreja sem vocação, todos os batizados são vocacionados. Esquecemo-nos, continuamente, da vocação laical.

4. A redescoberta da vocação laical

14.  No confronto com a modernidade agnóstica, antirreligiosa e anticlerical dos séculos XVIII e XIX, a Igreja se fecha ainda mais em suas estruturas.  E o século XX precisou esperar pela década de 20 para começar, pelo menos para a Igreja. E não se tenha dúvidas: começa com os leigos e leigas, homens e mulheres preparados, pertencente a algum tipo de Ação Católica, que se mostram como o rosto visível da Igreja num mundo plenamente conturbado.  Talvez por isso mesmo é que Pio XII tenha dito que “o século XX será o século dos Leigos”. Mas mesmo por tudo isso, ainda eram considerados braços do bispo, acompanhados sempre de perto pela hierarquia, ou seja, não se assumia que o que faziam era fruto de um chamado próprio, de uma vocação específica. Precisou-se esperar pelo Concílio Vaticano II para que tal acontecesse.

15.  Documento básico do Concílio, a Lumen Gentium, constituição dogmática do Concílio Vaticano II para a Igreja, retoma, em seu capítulo II, o conceito de Igreja como “O Povo de Deus”. A partir daí, todos os batizados encontram seu lugar, ninguém é objeto, mas sujeito da evangelização e, portanto, sujeito eclesial.

16.  Fundamental é a definição de leigo que LG dá. “Por leigos entende-se aqui o conjunto dos fiéis, com exceção daqueles que receberam uma ordem sacra ou abraçaram o estado religioso aprovado pela Igreja, isto é, os fiéis que, --- por haverem sido incorporados em Cristo pelo batismo e constituídos em Povo de Deus, e por participarem a seu modo do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo – realizam na Igreja e no mundo, na parte que lhes compete, a missão de todo o povo cristão.” (31) A partir daí o laicato é definido de forma positiva, pelo que é, e não mais de forma negativa, como as pessoas que não fazem parte do clero.

17.  Mas como estamos preocupados em refletir sobre a vocação laical, vejamos o que LG diz, ainda em 31: ”Aos leigos e leigas compete, por vocação própria, buscar o Reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus. (...) A eles compete muito especialmente esclarecer e ordenar todas as coisas temporais...” Em outras palavras, os leigos são chamados, e se o são, são vocacionados, receberam esta habilitação como Dom, como Graça, e, portanto, devem vivê-lo na plenitude, devem exercê-lo. Fazem-no porque o Espírito os chamou a fazê-lo; fazem-no em nome de seu batismo, de sua fé, de sua vocação. Por isso os bispos do Brasil chegam a afirmar que “a condição de vida do leigo é lida teologicamente como vocação.” (Doc 62 , 100)

18.  O decreto conciliar Apostolicam Actuositatem (sobre o apostolado dos leigos), em seu número 3, afirma que é necessária uma colaboração de todos os cristãos para que a mensagem alcance todos os homens e em toda parte. E continua: “Para exercerem tal apostolado, o Espírito Santo (...) confere ainda dons peculiares aos fiéis (cf. 1 Cor 12,7), distribuindo-os a todos, um por um, conforme quer (1 Cor 12,11). Os leigos agem a partir de dons conferidos pelo Espírito, pela aceitação destes carismas, isto é, são vocacionados.

19.  Mas é Paulo VI, em sua Evangelii Nuntiandi, quem explicita o caráter vocacional da ação do leigo. Em seu número 70, tratando dos obreiros da evangelização, EN diz que “Os leigos, a quem a sua vocação específica coloca no meio do mundo e à frente de tarefas as mais variadas na ordem temporal, devem também eles, através disso mesmo, atuar uma singular forma de evangelização. (...) A sua primeira e imediata tarefa não é a instituição e o desenvolvimento da comunidade eclesial – esse é o papel específico dos Pastores – mas sim, o pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes, nas coisas do mundo.” (EN 70)

20.  Em 1987 o Sínodo dos Bispos assumiu o tema dos “christifideles laici” (fiéis leigos). Das conclusões do Sínodo o papa João Paulo II escreve sua exortação apostólica Christifideles Laici, na qual o subtítulo já anuncia a existência de uma “vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo”, toda ela baseada na parábola dos trabalhadores da vinha contratados pelas mais diversas horas do dia para o serviço.  Com isso fica claro o apelo: todos são chamados a evangelizar; todos são responsáveis. Não é lícito a ninguém ficar inativo. Não há lugar para o ócio.

21.  Mas continuando na linha do Vaticano II, João Paulo II reafirma sempre e categoricamente a índole secular da vocação laical: “O mundo – diz João Paulo II – torna-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos..." (CfL 15). Estar no mundo a modo de fermento e sal não é só uma realidade à qual estamos imersos por nossa natureza, nem porque optamos por isso. Estarmos no mundo, constituirmos ou não uma família, vivermos apaixonadamente uma profissão, abraçarmos um partido político é no dizer de João Paulo II "uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial.” (CfL 15) Em outras palavras, não é só por um chamado de um desejo interno de se constituir profissionalmente, por exemplo, mas aí estamos porque o espírito nos chamou a aí estar e aí vivenciar, de forma plena, nossa vocação. Não estamos porque queremos, apenas, mas porque o Espírito nos quer ali, e para isso, nos habilita a “ordenar as coisas conforme Deus”.  É a nossa vocação laical. E isto é expresso de forma tão cabal que precisaríamos citar outro trecho da Exortação Apostólica: “Os fiéis leigos são chamados (pela sua vocação laical, diríamos nós) de forma particular a restituir à criação todo o seu valor originário.” (CfL 14)

22. Por diversos motivos, e originando-se de diversas partes, existe como que um pensamento difuso que busca difundir a afirmação de que aos leigos, o mundo, enquanto que as atividades voltadas para o ordenamento interno, as funções litúrgicas, entre outras, ficam a cargo dos ministérios ordenados. Entretanto, o Magistério da Igreja pós conciliar não tem se cansado de demonstrar que a vocação laical não se restringe apenas e tão somente ao “perímetro exterior do templo”, mas é responsabilidade de sua vocação o todo eclesial, evidentemente com pesos profundamente diferenciados, com claras delimitações de funções. É o próprio Papa quem no fala que “os vários ofícios e funções a que os fiéis leigos podem legitimamente desempenhar na liturgia, na transmissão da fé e nas estruturas pastorais da Igreja deverão ser exercidos em conformidade com a sua especifica vocação laical”. (CfL 23) Aqui o Papa, ao mesmo tempo em que demonstra que a vocação laical deve ter presença “nos vários ofícios e funções” internas às atividades eclesiais, deixa claro que esta presença não pode: a) ser executada como se possuídos da vocação presbiteral, na forma desta; e b) “de forma a chegarem freqüentemente a uma prática abdicação das suas responsabilidades específicas no mundo profissional, social, econômico, cultural e político;” (CfL 2).

23. O Espírito nos chama, nos vocaciona, nos habilita, mas não nos deixa sós, isolados, num vazio desértico como em busca do que fazer. Pelo contrário, descortina diante de nós um caleidoscópio infinito de possibilidades, de agires, de abraçar com amor e fé. A cada um a vocação laical chama a um serviço, dentre uma infinidade de possibilidades. E nenhuma para a qual não sejamos habilitados; nenhuma para a qual o espírito nos tenha colocado fardo pesado; “Dentro do estado de vida laical há lugar para várias vocações, isto é diversos caminhos espirituais e apostólicos que dizem respeito a cada fiel leigo.“ (CfL 56)

24. Com isso, estamos não só retomando documentos já muito lidos e refletidos, mas extraindo deles a necessária afirmação da existência de uma específica vocação creditada aos cristãos leigos e leigas, manifestada num grande leque de opções, que é a vocação laical. E tal trabalho tem o propósito de darmos, neste Ano Vocacional, o espaço merecido a esta vocação eclesial.

4. A vocação laical e o profetismo

25.  Deixemos, por questões metodológicas, um pouquinho de lado a teologia e façamos pequena incursão na sociologia, para discutirmos a relação entre o profetismo e a institucionalização.

26.  O sociólogo Pierre Bourdier, acredita que em toda instituição religiosa existem dois grupos separados: um corpo de especialistas e um corpo de não especialistas, os que não sabem. Os especialistas têm a faculdade de saber se comunicar com a divindade, com as palavras e gestos adequados, enquanto o corpo de não especialistas necessita desse para as comunicações com o sagrado.  Há, portanto, o monopólio do sagrado pelos especialistas, os quais definem a ortodoxia. Assim, a partir dessa “apropriação” do saber religioso constitui-se uma relação hierárquica. É a cristalização institucional.  Pode, entretanto, surgir o elemento carismático-profético, o qual, por dentro da instituição faz-lhe críticas buscando o seu retorno aos princípios fundantes do criador do grupo religioso.  Esse elemento carismático-profético pode surgir tanto do corpo de especialistas como dos excluídos do saber religioso. É o processo de questionamento da instituição como tal.

27.  A partir do Concílio Vaticano II tornou-se lugar comum a consideração de que a Igreja é o Povo de Deus em marcha, e que todos os seus membros, pelo batismo, são ungidos pelo múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo. A vocação é plena, pois recebe o leigo e a leiga as funções do próprio cristo, à sua forma e a partir de sua condição, e tendo em vista a sua realização nas condições concretas em que é Igreja.

28.  A vocação laical é sacerdotal.  Como diz AA citando 1Pe, os leigos “são consagrados para formar o sacerdócio régio e povo santo (1Pe 2,4-10) no sentido de que os leigos e leigas são chamados ”através de toda a sua atividade cristã, a oferecerem sacrifícios espirituais (...), oferecerem-se a si mesmos como hóstias vivas, santas e agradáveis a Deus”. (LG 10). É real, através da qual “os fiéis leigos são chamados de forma particular a restituir à criação todo o seu valor originário...” (CfL 14). Pela função real, o nosso batismo nos leva a buscar o reino, a construí-lo a partir da prática de Jesus, prática de inclusão, de denúncia, de opção pelos empobrecidos, pelos abandonados pelo sistema dominante.

29.  Assumamos desde já que não há predominância de nenhuma das funções. Cada sujeito eclesial, cada batizado, é chamado a exercê-la a partir do discernimento do que quer o Espírito de cada um de nós, na nossa especificidade. Entretanto, gostaríamos de desenvolver o múnus profético da vocação laical a partir de duas vertentes.

30.  1. Por aquilo que se costumou chamar de “índole secular”, os cristãos leigos e leigas têm como característica de seu estado o “viver em meio ao mundo e aos negócios seculares,... (sendo) chamados por Deus para, abrasados no Espírito de Cristo, exercer o apostolado a modo de fermento no mundo.” (AA 2). Repetidamente se afirma, como já o fez Paulo VI em sua EN que o lugar onde os leigos e leigas devem desenvolver sua vocação “é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos meios de comunicação social e ainda, outras realidades abertas para a evangelização como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento.” (EN 70).

31.  Desta forma, é no tecido humano da sociedade que se desenrola, prioritariamente, a vocação laical.  Por isso mesmo, a função profética deve se destacar quase que como condição “sine qua nom” para as demais. A vocação laical, chamada a buscar a construção do Reino e levar o mundo à consecução desejada pelo Cristo deve, necessariamente denunciar tudo aquilo que atravanca o surgimento do Reino, a presença da injustiça e da iniqüidade, os poderes que corrompem e são corrompidos, as formas individualistas de ser, os sistemas econômicos, sociais e políticos que colocam o homem como objeto de suas decisões e não como o centro. Esta forma de denúncia profética deve vir acompanhada de práticas que busquem uma alteração radical nas relações entre os homens e as mulheres, priorizando os empobrecidos e que estão à margem da sociedade como os sujeitos da nova civilização do Amor.

32.  2. Por outro lado, como sujeito eclesial, o laicato católico tem séculos de silêncio, séculos de não-sujeito, mas de objeto da evangelização. De um sujeito eclesial inexistente, já que o termo leigo vai aparecer somente em 95 na carta de Clemente de Roma, e de uma forma transversal, numa relação bastante ambígua com o Antigo Testamento, o processo de institucionalização da Igreja vai reduzindo ao silêncio aqueles que não pertencem ao “Klerós” .  Com isso,         quase dois milênios de silêncio levaram os leigos e leigas a se sentir Igreja de segunda categoria, de não se sentirem co-responsáveis pelo processo evangelizador, sujeitos da missão salvífica de Cristo.

33.  Mas se isso aconteceu no passado, a Igreja pós-conciliar tem outra visão da vocação laical. Paulo VI afirma que “os leigos podem também sentir-se chamados ou vir a ser chamados para colaborar com os próprios pastores ao serviço da comunidade eclesial, para o crescimento e a vida da mesma...” (EN 73).  Desta forma, não podemos mais descolar a ação dos leigos e leigas das ações pastorais. O que seria de milhares de comunidades de base por este Brasil sem a ação pastoral do laicato? O Doc 62, em sua terceira parte, lista uma longa série de ações pastorais, algumas consideradas serviços, outras funções e outras mesmo ministérios laicais. Demonstra que a Igreja no Brasil depende hoje, da dedicação amorosa e providencial dos cristãos leigos e leigas, principalmente nas ações litúrgicas e nas pastorais sacramentais e sociais.

34.  Aí se encontra um vasto campo de ação profética da vocação laical, muito embora, exatamente neste campo os leigos e leigas se subtraiam em sua plenitude vocacional como eminentemente profética

35.  Neste sentido, a vocação laical também tem de exercer a sua função profética dentro da instituição.  E desde já chamamos o testemunho de Urbano Zilles em seu comentário sobre a Didaquê: “A história da Igreja, desde os primórdios, nos mostra como muitas crises foram superadas pelo aparecimento de homens carismáticos, que não raro até viviam em certa tensão com a hierarquia de maneira análoga aos profetas do antigo Testamento.” (Comentário à Didaqué, pág. 62). Assim, não pertencendo ao corpo sacerdotal-hierárquico, o laicato pode e deve ver as coisas e analisar as situações de maneira tal que, no amor e respeito e nas devidas exigências canônicas, sinta-se levado, por sua vocação e pelo múnus profético nele infundido.  Também aqui, o profético é desinstalador, crítico. Em termos religiosos, é o defensor dos interesses humanizantes de Deus.

36.  A vocação laical, como profética, denuncia o que no intra-eclesial é persistentemente contra o clamor do povo. Estruturas e engrenagens endurecidas permanecem girando como um moto perpétuo, sem dar ouvidos aos apelos das estruturas vigentes, do novo processo cultural. Paralisadas pelo mesmo e pela repetição do mesmo, certas comunidades estão sendo esvaziadas não só fisicamente mas humanamente pelo tempo sócio-cultural. Esvaziam-se as ações litúrgicas entre outros motivos por celebrações secas , fixistas, tristes, por mensagens que pouco acrescentam àqueles e àquelas que foram em busca de respostas para suas angústias. Evidentemente que aqui não se pode colocar a vocação laical como a única profética, já que o “múnus” profético é comum a todos os batizados.

37.  Esta Igreja, firmemente institucionalizada, pode estar com dificuldades de dar respostas. Mas a instituição é importante sociologicamente para a coesão e a manutenção da ortodoxia, do magistério, do reto saber. A mudança vem de fora, dos que não concordam, dos que vêem as coisas de forma diferente, porque seu lugar social não é “intra eclesia” mas é no tecido humano da sociedade.

38.  Pelo que se afirmou acima, a vocação laical não pode se considerar plenamente vivenciada se não for profética, tanto “ad intra” como “ad extra”. Para isso são necessárias duas ações: uma externa, a formação continuada, específica e integral,e a outra interna, na qual, além dos conhecimentos da palavra do Magistério da Igreja, é necessário coragem. É mais fácil fazer a denúncia sócio-político-econômica do que a eclesial e suas ramificações.

39.  A vocação laical não pode e nem deve buscar subtrair para si as atribuições e funções das demais vocações eclesiais. Deve viver de tal maneira que se coloque sempre a serviço de uma Igreja que se sabe santa mas também pecadora. E a partir da corresponsabilidade que lhe cabe no ser Igreja, a denúncia profética interna é uma de suas atribuições.

40.  A vocação laical busca o novo, é questionante, é fermento que faz crescer a massa, é sal que dá sabor, mas é antes de tudo a encarregada de ordenar o mundo segundo o desejo de Deus.

5. A Construção da Vocação Laical

 41.  Os bispos do Brasil não se permitem e nem permitem a ninguém esquecer que “a Igreja é, em primeiro lugar, um mistério de comunhão, que reflete, com as limitações de seus membros e os limites do tempo e do espaço, o mistério da comunhão trinitária.” (Doc. 62, 64) . Em termos vocacionais, a Igreja não é nem a dominância de um dom sobre o outro, nem a submissão de um por outro. Igreja é comunhão de sujeitos portadores de dons que, ao se complementarem, constituem-na, cada um em sua plenitude. Por isso, quando o Concílio Vaticano II consagrou a Igreja como o Povo de Deus quis afirmar com isso “a profunda unidade, a comum dignidade e a fundamental habilitação de todos os membros da Igreja à participação na vida da Igreja e à corresponsabilidade na missão. Antes e além de toda e qualquer diferenciação carismática e ministerial está a condição cristã, que é comum a todos os membros da Igreja.” (Doc 62, 70) Assim, “a missão da Igreja não é responsabilidade de alguns, mas de todos.” (Doc 62, 77)

42.  A vocação laical constitui um sujeito eclesial: o laicato. A expressão “sujeito eclesial” compõe-se de dois termos que necessitam de aclaramento. Assim, por sujeito entende-se o que é por si, que tem uma identidade própria e sabe que a tem, e a conhece plenamente, exercendo-a em toda a sua grandeza. Aqui, sujeito opõe-se a objeto, coisa, sem querer, cujo sentido lhe é dado de fora, cuja identidade é passiva. Por outro lado, eclesial diz respeito à pertença à Igreja, constitutivo da Igreja. 

43.  Desta maneira, sujeito eclesial é o batizado que, por chamado próprio e intransferível, é portador de uma identidade indelével, que o caracteriza dentre todos os demais, pleno de dons e carismas que coloca a serviço da missão evangelizadora da Igreja a seu modo e de sua parte. Assim, destacamos na estrutura eclesial, o sujeito eclesial episcopal, o sujeito presbiteral, o sujeito diaconal, os sujeitos religiosos e religiosas, e o sujeito laical, dentre outros sujeitos eclesiais que, de alguma forma, interpenetram estes.  Desta maneira , todos, na Igreja, são sujeitos, são portadores definitivos da missão evangelizadora, habilitados pelo Dom recebido no batismo, mas que exercem a mesma missão de forma complementar. Teologicamente, os sujeitos eclesiais não se constituem por si mesmos.  A sua essência vem do batismo, e do dom do Espírito neles infundido.

44.  Desta maneira, o Concílio concebe os bispos como aqueles que “receberam o encargo de servir a comunidade com seus colaboradores, presbíteros e diáconos, e presidem em nome de Deus à grei, de que são pastores, como mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado e ministro do governo da Igreja.” (LG 20). Definição concisa, que se explicita na prática, no dia a dia, nas realidades continuamente diferentes com as quais esses pastores se encontram.

45.  Com relação aos presbíteros, estes são “chamados ao serviço do povo de Deus como prudentes cooperadores da ordem episcopal, seus auxiliares e seus instrumentos (que) constituem com o bispo um único presbitério.” (LG 28). Nota-se, aí, que a essência do presbiterato está umbilicalmente ligada ao episcopado, como função indivisível e indissociável.  Mas o que dizer de um presbítero cura de uma Catedral e de outro que para atender a todo o seu povo caminha horas e horas sob o sol escaldante, enfrentando a pobreza e a injustiça dos sertões brasileiros? Já o diaconato recebe a imposição das mãos “não para o sacerdócio mas para o ministério”. (LG29).

46.  O laicato tem consciência de que Igreja é Comunhão, ou não é Igreja. Assim, a vocação laical só pode ser exercida em comunhão e na busca da construção desta. Mas Comunhão só existe entre pessoas fundamentalmente iguais em dignidade, entre sujeitos conscientes e livres, isto é, autônomos. Não há comunhão entre senhor e escravo; entre o oprimido e aquele que o oprime; entre os que sabem e os que não sabem; entre os que detêm poder e os que se submetem passivamente a esse poder. Não pode haver comunhão entre sujeito - aquele que pensa e age - e objeto - receptor da ação ou seu mero instrumento.

47.   É por isso que a comunhão eclesial só se dá entre "sujeitos eclesiais", isto é, entre homens e mulheres que assumem o seu batismo, como profetas, sacerdotes e reis, vivendo plenamente a vocação que o Espírito lhes infundiu. A vocação laical se dá na relação com as demais vocações eclesiais. Nesta relação de sujeitos eclesiais portadores dos infinitos dons aspergidos pelo Espírito por toda a sua Igreja, surgem as vocações eclesiais, na essência e no serviço que o mesmo Espírito insufla. As vocações eclesiais existem na sua complementaridade. Assim, a vocação laical se realiza junto, em relação com as demais vocações eclesiais.

48.   A vocação eclesial, o chamado a nos constituirmos como Povo de Deus, nos coloca a missão única de sermos continuadores da prática de Jesus. Esta prática não se dá somente entre nós, em ambiente fechado, em estruturas que se bastam. Pelo contrário, a eclesialidade se dá na relação com o mundo. A razão de ser dos "sujeitos eclesiais", ou seja, das vocações específicas e complementares só é encontrada fora quando capaz de ir além de nossas estruturas. As vocações eclesiais, os "sujeitos eclesiais", não existem para si mesmas, mas para serem explicitadas no processo evangelizador, no anúncio inculturado da boa nova trazida pelo Filho de Deus do qual somos testemunhas. A vocação, que nasce da graça e se fortalece na Igreja, tem no mundo o lugar de sua expressão mais perfeita.

6. A vocação laical e a organização dos leigos e leigas  

49.  As vocações eclesiais só se constituem plenamente em relação. Eis a razão básica da busca de uma organização plena dos cristãos leigos e leigas. A organização contribui para o ser mais, para a formação da consciência laical e, por isso, mais criativa e responsável. O isolamento não produz reflexão, mas abandono e solidão, desânimo e descrença. A organização permite que os cristãos, leigos e leigas, possam se construir como "sujeitos eclesiais", assumindo plenamente a vocação laical, tomando a palavra, sendo interlocutores, contribuindo para a realização plena das demais vocações. Em outras palavras, a construção da identidade da vocação laical é condição para a realização da vocação presbiteral e da vocação episcopal, e das demais vocações eclesiais.

 50.  O laicato organizado, ao buscar a construção de sua vocação eclesial, busca também o conhecimento de si próprio a fim de que possa entender, aceitar e participar da construção das demais vocações. A partir da plena comunhão eclesial, a consciência laical aflora, as ações eclesiais deixam de ser tarefas designadas, para serem vistas como serviços livremente assumidos e os ministérios laicais deixam de ser supletivos e passam a ser reconhecidos.

51.  A partir da consciência plena da vocação laical, a partir da consciência plena de cada sujeito eclesial, consciência esta que permite a descoberta constante de cada um, não há mais objeto, mas só há cristãos, homens e mulheres que se sentem chamados, vocacionados, responsáveis pelo Reino, cada um à sua maneira e a seu modo, a partir de sua vocação e do seu carisma. Constitui-se assim a Igreja Comunhão como Povo de Deus, toda co-responsável e plenamente habilitada à única missão.

7. A vocação laical na América Latina

52.  A vocação laical, antes tratada como inexistente, de forma ou de fato, recebeu status de grande magnitude na Conferência Episcopal Latino Americana – CELAM, em 1992 em Santo Domingo. Os senhores bispos presentes ao evento, percebendo a realidade da Igreja na América Latina, reconheceram a necessidade de uma segunda onda evangelizadora no continente. Esta segunda onda teria nos leigos, na diversidade de expressões de sua vivência vocacional, um importante papel. A primeira onda aconteceu através do processo de colonização, no bojo do qual o Cristo foi pregado pelas ordens religiosas as mais diversas. Este rosto já está, de certa forma, impresso no coração dos latinoamericanos a partir de seus determinantes culturais milenares.  Lembremo-nos de já em Puebla os bispos latinoamericanos afirmavam que o rosto do Cristo, no Continente, podia ser encontrado no empobrecido, na pessoa do índio, do negro, da mulher oprimida, nas situações de pobreza e marginalização.

53.  Alem dessas situações que desafiam a Igreja a evangelizar nestas realidades difíceis e complexas, há outros campos desafiadores. Há, em algumas realidades, um ateísmo militante.   E aí está o grande campo de atuação da vocação laical. Os nossos bispos dizem que agora, ou a evangelização acontece a partir da vocação laical, ou não acontece. Chamam a isso de “Protagonismo dos Leigos” dentro de uma evangelização “inculturada”.

54.  Ao mesmo tempo em que a vocação laical, pelo seu múnus sacerdotal, tem a função de oferecer, do nascer ao pôr do sol, essa vivência profunda e amorosa do povo latino americano, no altar da vida, está sendo chamada pelos nossos pastores a anunciar o Cristo e seu Reino na denúncia das estruturas injustas que oprimem, que massacram e que mantém as populações milenares como no tempo das invasões européias.

55.  Particular atenção merece a Exortação Ecclesia in America, oriunda do Sínodo das Américas, acontecido em 2000, na qual o Papa João Paulo II afirma que “a renovação da Igreja na América não será possível sem a presença ativa dos leigos. Por isso compete-lhes, em grande parte, a responsabilidade do futuro da Igreja.”

56.  Assim, a vocação laical, pelo fato deste laicato viver sua vocação prioritariamente no “tecido humano da sociedade” é fundamental na transformação geral e estrutural das condições injustas e desumanas do nosso continente. E a função real, recebida no Batismo, exige da vocação laical a busca, a luta por uma sociedade mais justa e humana, fraterna e solidária, prenúncio do Reino definitivo, ou como nos diz o Concílio, “ordenar todas as coisas temporais e ordenando-as segundo Deus.” (LG 31)

8. A vocação Laical na Igreja no Brasil

57.  O próprio título do Documento 62, aprovado na 37ª Assembléia Geral da CNBB, em 1999, já demonstra a preocupação da Igreja no Brasil com a vocação laical: Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas. Mais que isso, foi a própria Conferência Episcopal quem incentivou a criação de uma organização laical que tivesse como função primeira a efetivação de um laicato adulto na fé, constituindo-se plenamente Igreja na explicitação clara de sua vocação: o Conselho Nacional de Cristãos Leigos e Leigas Católicos do Brasil – CNL.

58.  A Igreja no Brasil vê com preocupação a separação da vocação laical entre aqueles que se dedicam ao âmbito intra-eclesial e aqueles que se internam nas chamadas tarefas temporais. Vê “com alegria e esperança a atuação de inúmeros leigos que, com consciência crítica, testemunham o Evangelho no ambiente familiar, no trabalho, na política e na participação firme e eficaz nos mais diversos setores da sociedade civil.” (Doc 62 130). Mas reconhece com a mesma alegria a existência de muitos fiéis leigos e leigas que nutrem a legítima aspiração de contribuir com seus talentos e carismas na construção da comunidade eclesial. (DOC 61 132). Por isso dizem os nossos bispos “foi nossa preocupação manter firmemente unidos os dois aspectos da variedade das vocações e da unidade da missão. Pois não há uma vocação leiga única.” (DOC 61, 133).

59.  Em suas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, a CNBB vê o desenvolvimento da vocação laical no “amplo campo do serviço de transformação da sociedade, da assistência aos pobres, da promoção social e dos direitos humanos, da justiça e da política; o campo do diálogo religioso e da colaboração com pessoas de outras religiões ou credos; o campo do anúncio missionário de Jesus Cristo (...); e o campo dos ministérios e serviços para a construção e sustentação da vida da comunidade cristã. “(Doc 61, 133)


9. A vocação laical no Ano Vocacional

60.  Já no 1º Congresso Vocacional do Brasil, realizado em setembro de 1999, se constatavam luzes e sombras sobre a Pastoral Vocacional. Entre as luzes citava-se o fato de que, em algumas dioceses incentivavam-se “todas as vocações e ministérios, superando a idéia de que vocação é somente para o sacerdócio ministerial e para a vida consagrada.” (Doc final). Mas não se podia esconder o fato de que ainda o tradicional vigorava, ou seja, os participantes constataram que “trabalha-se mais a vocação do padre, da religiosa, sem considerar a especificidade do leigo e da leiga, do religioso irmão, da vida contemplativa, do diaconato permanente e dos diferentes ministérios. A mulher não é suficientemente valorizada pela contribuição que presta à Igreja. Já não se ouve mais, com o mesmo vigor de antes, a voz profética na Igreja capaz de atrair e fascinar.” (idem)

61.  Chama-se agora um Ano Vocacional, e nos é colocado nas mãos um texto extremamente rico, questionador, mas também esperançoso. Tal é o conteúdo do texto-base do Ano Vocacional. Usa continuamente um sentido abrangente do conceito de vocação, sabiamente calcado na providencial intuição do Papa João Paulo II em sua Exortação Novo Millenio Ineunte: “Avancem para águas mais profundas”.  O clamor do Papa é para que todos os marcados pelo batismo e portanto vocacionados, digam adeus à indisponibilidade. Todos são chamados ao trabalho Ninguém se considere liberado.

62.  Fugindo da tradicional preocupação quase única pelas vocações sacerdotais e religiosas, consideram-se todos os cristãos e cristãs vocacionados, e chama a Pastoral Vocacional a uma profunda eclesialidade quando diz que “embora se deva continuar com a preocupação de suscitar mais vocações presbiterais, é importante não deixar de lado todas as demais.” (TB 69).   Mais ainda, em sua apresentação, D. Angélico Sândalo Bernardino, bispo responsável pelo Setor Vocações e Ministérios da CNBB, extrai as quatro chaves de leitura do texto-base, nas quais a vocação laical está consolidada. Vale a pena repetir aqui: “1) necessidade de uma vasta e capilar animação vocacional que envolva todas as componentes do Povo de Deus; 2) animação vocacional que, além do ministério ordenado e da vida consagrada, cuide de todas as outras vocações que brotam da riqueza do sacramento do batismo; 3) atenção especial à vocação dos cristãos leigos e leigas, com destaque para os ministérios não ordenados, a família e o matrimônio; 4) unidade da Igreja, que não é uniformidade, mas interação das legítimas diversidades.

63.  Por isso a imensa responsabilidade dos cristãos leigos e leigas, e de seu organismo aglutinador, o Conselho Nacional de Cristãos Leigos e Leigas Católicos do Brasil – CNL, numa participação expressiva neste Ano Vocacional.  Por isso também a imensa responsabilidade de toda a Igreja na adequada formação de um laicato adulto na fé, consciente de sua vocação e de sua identidade. Se os leigos e leigas precisam ser Igreja a pleno título, a vocação laical precisa cada vez mais ser valorizada e vivenciada a fim de atender ao apelo do Espírito nos meandros da história, fazendo com que a Igreja responda sempre e cada vez mais o apelo do Senhor: “Avancem para águas mais profundas!”

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A autocompreensão da Igreja como Povo de Deus

A autocompreensão da Igreja como Povo de Deus, que se tornou dominante somente a partir do Concílio Vaticano II, expressa o ser, a realidade mais profunda e íntima da Igreja, pois ela é o Povo de Deus da nova e da eterna aliança. Tal compreensão é fundamentalmente bíblica, por isso a Igreja se situa numa linha histórico-salvífica, atuante no hoje da história humana. Assim, é pertinente refletir sobre seu conteúdo bíblico, com a finalidade de encontrar seu significado fundamental e descobrir sua aplicação à Igreja, enquanto ela expressa sua própria realidade misteriosa.