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domingo, 1 de junho de 2014

Direitos e desejos humanos

J. B. Libanio em 15 de maio de 2012*

Direitos e desejos divergem desde a fonte. Caminham por vias diferentes. Por acaso cruzam-se. E, em outros momentos, trilham caminhos que se distanciam.

O direito funda-se, em última instância, na natureza racional, livre e social do ser humano. E se mergulharmos ainda mais fundo, esbarraremos com o ato criativo de Deus. Por ele nos constituímos humanidade. E esse Deus se define como Trindade, como comunhão eterna.

Recebemos da Trindade a marca maior de existir para conviver. E os direitos e deveres nascem primordialmente dessa condição humana de seres nascidos para a convivência. Tudo o que a dificulta cai sob o peso da violação do direito humano e tudo o que a favorece se impõe como direito.

Para a convivência requerem-se condições materiais, psíquicas, culturais e espirituais a que todos têm direito. O mundo material existe para satisfazer a tais exigências básicas do ser humano. Os outros usos se justificam em função desse princípio primeiro. Os antigos formularam-no sob o imperativo do “destino universal dos bens”. Anterior ao famigerado direito da propriedade privada, existe o direito de todos aos bens fundamentais da vida digna e da convivência fraterna. Para isso estamos aqui na terra. Viver e conviver: eis a pedra de toque de todo direito.

Os desejos nascem de outra fonte. O ser humano carrega dentro de si tensão única. Circunscrito ao corpo, não ultrapassa o momento presente e o lugar em que está. Não consegue voltar ao passado. Vê a vida escapar-lhe da mão como a água que lhe cai e se perde na terra. O futuro ainda não existe. Só lhe resta viver o presente. Senta-se diante do globo terrestre, mas só consegue estar naquele lugarzinho onde tem os pés fincados.

Se fosse só animal, permaneceria feliz atado ao lugar e ao momento em que se encontra. Os instintos só conhecem o presente, embora carreguem de modo mecânico traços do passado herdado biologicamente. Sem consciência, não ultrapassam os próprios limites.

O ser humano difere do animal pela dimensão de espírito. Espraia-se para além de todo tempo e de todo espaço. Está plantado no presente enquanto corpo, mas move-se para o passado pela memória e para o futuro pelo desejo. Cravado no lugar que os pés o prendem, sonha com viagens, com outras plagas diferentes, desconhecidas ou simplesmente imaginadas a partir do que ouviu, leu, fantasiou. De novo, nascem-lhe desejos.

A fonte, portanto, do desejo lhe vem ao coração humano do contraste de um corpo preso pela materialidade do lugar e do espaço e de um espírito que rompe todo limite humano até perder-se no infinito de Deus.

Os desejos têm dentro de si um movimento que não respeita nenhuma barreira. Brotam do nosso interior que aspira para nós mesmos a todo bem material, psíquico e espiritual. Não se perguntam se tal impulso redunda em bem para outros. Nesse momento, os desejos se chocam com os direitos do outro.

No projeto de Deus, que nos criou à imagem da Trindade, o ser humano está destinado a viver em harmonia consigo, com os outros e com a natureza. Então, neste caso, os desejos ao brotar do próprio sonho de Deus para nós nunca contradiriam os direitos humanos. Ambos teriam a mesma fonte: Deus comunhão.

Historicamente aconteceu que interferiu a liberdade humana e rompeu essa sintonia fundamental. Os direitos se impuseram pela força da razão e os desejos seguiram os rumos da busca da própria satisfação. Esta já não olha a própria dignidade e convivência, mas interesses individuais de um sujeito que rompeu a ordem divina.

Na atual situação, toca-nos submeter os desejos à ordem dos direitos. O sentido de humanidade impõe que os purifiquemos a fim de que eles colaborem para que as pessoas vivam com dignidade e convivam pacífica e fraternalmente. Todo desejo que contrarie tal ordem infringe o projeto maior de Deus. O ideal se concretiza no momento em que os desejos e os direitos se cruzam para que a vida humana se torne feliz, tranqüila e solidária. Desejamos o que os direitos pedem e os direitos oferecem material para os nossos desejos. Aproximamo-nos da ordem primeira descrita na narrativa do Paraíso que Jesus reconstruiu e aperfeiçoou. Que o novo ano nos estimule a trabalhar para que os dois rios do direito e do desejo se encontrem na foz do bem-estar da humanidade.

*João Batista Libânio padre jesuíta, escritor e teólogo brasileiro
Nascimento em 1932
Falecimento 31 de Janeiro de 2014

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